Arte da imagem: Ana S. Bragança |
31 de agosto de 2022.
Lembro-me de quando corria pelos bosques. Minhas patas tocavam a relva fria pelo orvalho matinal e meu lombo era coberto pelo sereno noturno quando não achava uma toca para me enfurnar.
Eu era um lobo jovem, certamente marcado por batalhas da juventude, assim como pelo medo crescente dos seres bípedes que invadiam meu bosque para tomar minha comida para si e levar à morte todas as criaturas selvagens que se movessem com brusquidão. Caçadores.
Havia convivido com muitos homens ruins, o suficiente para temê-los e avançar com violência ao menor sinal de desconforto. Quando conheci aquele homem, sabia que como todos os outros ele matava as “pragas silvestres”, mas ali, ele não portava armas.
Me aproximei quando me ofereceu comida: estava faminto pela escassez de presas, estava curioso pela gentileza. Mas para o infortúnio de todos, ele era homem, eu lobo.
Acompanhei-o até sua vila, com receio, onde pessoas cercavam-o de admiração por feitos sociais que eu malemal compreendia os conceitos e aplicação. Ali vivi, onde já não sentia mais o gélido da manhã, e o úmido do crepúsculo fora substituído pelo acariciar de mãos quentes em meus pelos.
Tínhamos desentendimentos. Eu rosnava por velhos hábitos, latia por grandes medos, mas tudo acertava-se com o afeto e espaço, apesar de sua chateação ser expressada com clareza. Até que chegou o dia em que ele confiou que eu jamais verdadeiramente o morderia, e sem pensar, como um instinto inato em resposta ao ato, abocanhei-o.
Sua carne era macia, mas não consegui mastigá-la entre meus caninos. Seu pedaço de pele preso nos vãos afiados dos molares era amarga e tinha gosto de arrependimento. Tentei lamber de imediato a ferida quando percebi o que havia feito, mas o homem afastou-se com espanto e incredulidade. Vi raiva e tristeza em seus olhos escuros.
Nos dias que se seguiram, achei que havia obtido seu perdão, embora o seu não esquecimento fosse óbvio. Mesmo quando colocou uma coleira prateada em meu pescoço e com orgulho tornei-me seu cão, tal qual como ele meu dono, percebi que o tendão do dedo mordido já não mexia-se mais como antes.
Seu dedo anelar travava, vez ou outra, quando tentava movê-lo com a mesma plenitude de outrora. Algumas vezes conseguia, por outras paralisava.
Segui como seu cão, agora mui leal. Evitava até mesmo rosnados, o que ia contra minha natureza, mas engolia-os como os animais de estômago indigesto mascavam a grama que lhes servia de remédio acre.
Afastei raposas e ratos, falsos e folgados.
Mas este tendão não melhorou, por mais que eu não notasse sua falsa anestesia. E foi retirando o anel do dedo de tendão ruim que liberou suas palavras. Todas foram dolorosamente mágicas.
As linhas de suas frases tinham fios afiados, que cortaram as artérias de meu coração ainda pulsante, fazendo-o jorrar. De repente me vi naquilo: naquela miscelânea de dor, sangue e mágoa.
Gritei e chorei, lutei e rosnei, mas não havia quem pudesse me fornecer tamanho socorro.
Então meus uivos se tornaram gemidos baixos, até que só sobrasse o choramingar sussurrado ao vento.
Quando veio o silêncio, eu me afundava em uma poça vermelha e lamacenta, de coleira opaca.
Dormi ali, sobre sangue e barro, com meu caçador ao meu lado.
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