Arte da imagem: Ana S. Bragança |
“Compus sobre o sofrimento do mundo para que gravasse nas linhas de minha partitura cada lágrima e soluço dado em noite tardia, para que estes soubessem que não foram em vão, e que um dia alguém os sentiu e os compreendeu a ponto de transformar seus sons angustiados em acordes de melancolia, de uma forma que os consolem nas manhãs frias”.
— Introdução ao réquiem da tristeza, uma das muitas obras de Sébastien Laflèche da coleção “Arpejos e Despejos”, cuja musa desconhecida é tão somente: Solène.
Sentei-me, e em minha escrivaninha havia uma taça de vinho vazia. Sua prata mal polida fazia a superfície do objeto parecer mais envelhecida do que realmente o era. Noite passada virei garrafas, enquanto com uma pena de bico desleixadamente afiado escrevi garranchos numa tinta opaca. Ó, Solène, por que teves de me deixar?! Não vês que sem ti o mundo tem tão pouca cor quanto essa prataria nublada?
Olhei meu rosto num espelho embaçado por uma fina camada de poeira em si. Ainda que sujo, conseguia distinguir com clareza em seu reflexo torpe os bolsões escuros debaixo de meus olhos. Quantas noites passei sem dormir por ti? Agora meus dedos calejados pelas cordas daquele violino quebrado passam por minha pele áspera. As sardas de meu rosto tem tanta vivacidade quanto as estrelas que vimos naquela noite. Achei que seu brilho condizia com vigor, mas descobri num livro encardido que todas mortas já estavam.
Arrumei meu cabelo com um pente sem um dente, e este dente que faltava fez um fio saltar para fora de seu lugar. Irritantemente insistente tentei o abaixar, até que uma mecha inteira se tornasse bagunça. Sentei na beirada de minha cama, mas você não estava lá para me abraçar. Levo minhas mãos ao rosto, mas elas são frias como a bruma da manhã, e me fazem sentir falta de seu toque, cálido como o sol da tarde nos passeios ao parque.
Solène, me diga, você voltará para mim? Se eu lhe enviar cartas e partituras, e tocar no anfiteatro que foi recém-construído, você torna a me beijar como fazia naquelas noites primaveris?
Caminhei até o banheiro deste pequeno sótão transformado em quarto. Consigo ouvir a bagunça dos andares debaixo. Madame Louise teve uma filha, uma menina como você sempre alegava que viria ser, desde a primeira vez que a viu. Numa destas semanas que se passaram sem rumo nem prumo, ela me perguntou onde estava a menina da voz de colibri. Ó Solène, eu respondi que tinha dado uma rápida saída, e a mentira me doeu mais do que a verdade redarguida.
A lâmina que passo para aparar os pelos ralos de uma barba mal cuidada me cortou com sua rispidez, mas não tanto quanto suas palavras na noite em que partiu. Como pôde fazer isso com meu coração, Solène? Você que o ritmava tão bem, largou sua batuta e deixou que a melodia de meu amor se tornasse uma ensurdecedora cacofonia de dor.
Lavo o sangue quente que ainda alega que meu corpo falecido de paixões segue funcional. Faço um gargarejo com a água amarga que corre da torneira gélida e aqueço o que me resta deste receptáculo depredado. Saio em passos vagos do banheiro bem iluminado e pego o violino largado. Consertarei-o até o fim deste dia, Solène e irei compor. Te eternizarei em cada linha e despejarei no mundo todo meu desgosto.
Assim, quando eu terminar de excomungar as coisas ruins, e deixar que os ventos do tempo carreguem as tristezas para longe de mim, sobrarão tão somente as boas e eu conseguirei ver novamente o teu sorriso com o mesmo fulgor.
Mas Solène, se quiser voltar, saiba que a porta de minha casa está sempre aberta.
“Quando Sébastien morreu, em seu testamento desejou que partes não funcionais de seu antigo violino fossem reparadas com seus ossos. Apesar do pedido um tanto quanto mórbido, a sociedade apaixonada por excentricidades tal qual era na época, cumpriu-o. Um doutor, um escultor e um fabricante de instrumentos ajudaram no atendimento ao desejo. Hoje, o violino de ossos encontra-se guardado na velha mansão da família Laflèche, como um tesouro a ser resguardado pelos seus herdeiros”.
Ana S. Bragança
Blogger Comment
Facebook Comment